Aborto: Muito Mais Que Um Dilema Moral

publicidade

Você é contra ou a favor do aborto? O tema é polêmico, e a simples menção do assunto é capaz de provocar grandes reações. No entanto, ser contra ou ser a favor do aborto não interfere em nada no que diz respeito à maioria das condutas.

Segundo a OMS, morre uma mulher a cada dois dias no país, vítima de aborto clandestino. Dados da Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2016, revelam que de cada cinco mulheres com até 40 anos, uma já fez um aborto pelo menos.

Os debates sobre a legalização são atravessados por dilemas éticos, sobre quando se inicia a vida e sobre quem tem direito sobre ela. Mas existem basicamente três linhas de posicionamento em relação ao aborto. Na primeira, o raciocínio biológico prevalece. Segundo essa concepção, até a 12ª semana de gestação, o sistema nervoso é ainda tão precário que não existe a possibilidade de consciência. O aborto até os três primeiros meses de gestação, para esses, deveria ser autorizado, pela mesma lógica que se retira órgãos para transplante de alguém com morte cerebral.

Em outra corrente, há os que constroem sua opinião a partir de estatísticas e de forma bem mais pragmática: se os abortamentos vão acontecer, sendo proibidos ou não e independente de posicionamentos, melhor que sejam realizados por médicos e com a máxima assistência.

Há ainda a vertente em que prevalece a visão religiosa: a alma já existiria no momento da concepção. Para os que pensam assim, a mulher grávida deve arcar com as consequências de trazer o filho ao mundo, independente das circunstâncias. O aborto então não deve ser praticado em hipótese alguma.

Apesar da disparidade de posições, o maior mal estar que o assunto provoca parte na verdade de um falso dilema, como aponta o médico Drauzio Varella: não é verdade que alguns sejam a favor e outros contra o aborto. Todos são, na realidade, contra essa solução, principalmente as milhares de mulheres que se submetem a ela, por não enxergarem no momento outra saída. Mas manter a prática na ilegalidade traz mais prejuízos.

O aborto, quando acontece, é sempre uma tragédia. Desde o início da fecundação, a mulher passa a ser tomada por manifestações físicas e mudanças psíquicas que impactam radicalmente sua existência: seu corpo começa a mudar de forma, seu sono, sua fome e sua atenção se alteram e sua sensibilidade aumenta. Fruto de um acidente ou de um desejo, uma gestação será sempre significativa e restará como marca na existência.

Imagine o que é para uma mulher sentir todas as transformações, passar pela intervenção cirúrgica, elaborar a decisão tomada, sangrar, tudo isso sendo maltratada pela clandestinidade e pelo silêncio punitivo, justamente quando estão mais frágeis, precisando de apoio.

Na prática, estamos falando de mulheres pobres, porque para quem tem dinheiro, o aborto sempre existiu como possibilidade. Mas mantê-lo na ilegalidade tem seus motivos, pois justamente por ser um momento de grande vulnerabilidade, o preço cobrado nas clínicas é altamente exagerado. Temos então um mercado que, mantido na clandestinidade gera lucros maiores. A questão da misoginia também deve ser levada em conta. Ao rejeitar o posto da maternidade compulsória, a mulher ofende a estrutura patriarcal com sua liberdade de escolha. Resta puni-la.

Não se trata, portanto, apenas de um dilema moral. É questão também de autonomia e emancipação feminina. Enquanto esperamos o consenso a respeito do instante em que a alma se instala num grupo de células embrionárias, alheios à tragédia das mulheres que morrem principalmente nas periferias das cidades brasileiras, optamos por deixar tudo como está. E assim não se fala no assunto.