Estranhos Estrangeiros

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De tempos em tempos, o frágil convívio entre os diferentes modos de ser entra em colapso, como vemos acontecer agora. São tempos em que os movimentos migratórios introduzem estrangeiros no meio de outras culturas, pessoas que falam com sotaque estranho, que comem, que rezam e que amam de outras maneiras, incomuns aos nossos hábitos.

Os diferentes se entranham. No dia 03 de agosto, no Rio de Janeiro, enquanto trabalhava vendendo esfihas e doces típicos, o refugiado sírio Mohamed Ali foi hostilizado e agredido verbalmente. Em vídeo postado nas redes sociais, é possível ver um homem gritando repetidas vezes, de forma bastante exaltada, ameaçando Ali com dois pedaços de madeira: “Sai do meu país! O nosso país está sendo invadido por esses homens bomba, que matam crianças!”.

No Brasil, a xenofobia é crime tipificado na lei 9.459, de 1997. O artigo primeiro versa que “serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A palavra xenofobia vem do grego xenos (estranho) e fobia (medo ou rejeição). Medo ou repulsa ao estranho, ao outro, ao estrangeiro, ao desconhecido. Quem é esse outro a quem tememos? Por que tememos? Como reagimos a esse temor?

Uma penetrante análise sobre a questão da alteridade foi desenvolvida por Freud, em seu ensaio O Estranho. Nesta reflexão, ele busca a etimologia, no alemão, da palavra estranho (unheimlich), e aponta que o estranho é um derivado, uma variação da palavra familiar (heimlich). A partir da ambiguidade da palavra (estranho-familiar), o teórico propõe que o estranho não é algo totalmente desconhecido. Pelo contrário, o estranhamento causado vem justamente de resquícios de algo do outro que também é nosso, estranhamente familiar, mas foi recalcado há muito tempo e agora é quase irreconhecível. De modo bem grosseiro, podemos pensar na situação em que o cão “estranha” seu dono, ou alguém conhecido. Uma situação que lhe deveria ser familiarcausa estranhamento, despertando medo e agressividade.

Mas o que um refugiado pode ter de familiar conosco? Engana-se quem pensa que nada. Todos nós já tivemos, em muitos momentos, o sentimento de nos sentirmos estrangeiros, de não sermos tão autênticos e legítimos como os outros, de ficarmos de fora de alguma coisa importante. Na infância, somos recém-chegados. Entendemos as coisas ainda de forma incompleta, fragmentada. “É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi”, como na poesia de Caetano. Tudo ainda é muito grande e amedronta. Na puberdade e adolescência, nos afastamos de nossa família e os que eram mais familiares começam a soar como estrangeiros. O próprio corpo é sentido como território desconhecido e procuramos abrigo e acolhimento nas “tribos”.

Esperamos que com a vida adulta esse desconforto termine, mas não é bem assim. Trabalhamos, tomamos nossas decisões, temos filhos e finalmente deveríamos nos sentir autênticos, cidadãos legítimos. Ainda assim, sentimos que ser adulto seria diferente, algo maior, mais certo e substancioso. Em seguida vem a velhice e tudo fica rápido demais. As coisas mudam numa velocidade que não conseguimos acompanhar e o tempo nos torna estrangeiros de nossa própria existência.

Qual a forma mais simplista de amenizar todo esse desconforto? Encontrar um outro para chamar de inadequado pode trazer algum alívio. De uma certa maneira, todos nós somos estrangeiros. Quem discrimina, seja aqueles que têm aparência ou os que têm costumes diferentes dos seus próprios consegue momentaneamente uma ilusão de legitimidade, uma fantasia de ter conseguido, no grito e na violência, um lugar de pertencimento e segurança para si mesmo.