“Eu” Bom, Não “Eu” Ruim

Um olhar psicanalítico para o diferente e a intolerância...

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Calvin and Hobbes (Calvin e Haroldo no Brasil) é uma série de tiras criada, escrita e ilustrada pelo norte-americano Bill Watterson. Elas são consideradas por muitos uma obra prima, pela sua visão do mundo, pela imaginação do protagonista e pelas situações insólitas em que Calvin e seu tigre imaginário se envolvem:

 

Imagino que muitos devem conhecer a tirinha. O final é previsível, os dois se acertam, e ao verem que ninguém ganha, concluem: que brincadeira idiota!

Para refletirmos sobre a intolerância e a agressividade, vamos pensar agora em outra cena. dois bebês, Davi e Maria Luiza, ambos por volta de um ano de idade, brincam perto um do outro. Não brincam juntos, apenas perto. Às vezes param o que estão fazendo para reparar o outro, por vezes disputando, trocando ou oferecendo seus brinquedos, mas apesar de estarem próximos, não estão juntos.

Sendo criaturas ainda muito pequenas, eles estão em fase de construção de sua capacidade de representação simbólica. Já conseguem fingir que estão dormindo, brincar que estão comendo alguma coisa de faz de conta, mas não conseguem ainda contracenar com o outro ou seguir regras grupais de uma trama mais elaborada. Nesse momento, existe apenas um rudimento de sociabilidade.

É nesse cenário que começam a surgir disputas, pela atenção dos adultos, pelo lugar que o outro ocupa, pelo brinquedo que o outro tem. O que a outra criança estiver fazendo torna-se objeto de cobiça. Isto acontece porque eles ainda estão definindo seus próprios contornos. É como se houvesse um só lugar possível de se existir: aquele que acabam de descortinar.

Grande parte da intolerância em nossa sociedade tem origem nesse momento arcaico de nossa infância, e ela será tanto maior quanto menor for a solidez da imagem que se tem de si. Na tira de Bill Watterson, o “americano defensor da liberdade e da democracia” se contrapõe ao “comunista asqueroso”. Se alguém ou se um grupo tem valor por ser o “defensor da liberdade”, não vai suportar que outro, um “não eu”, possa ser também. É preciso dividir o mundo entre os que estão na caixa de areia e os que estão fora.

A intolerância se alimenta dessa forma primitiva de pensar. Compreender esse mecanismo pode nos ajudar pensar algumas questões, como: por que tão poucos negros ocupam espaços importantes no Brasil, de forma desproporcional à porcentagem de negros na nossa população? Por que povos com origens comuns e de histórias comuns, como israelenses e árabes, mantêm um estado de continuada beligerância? Por que observamos na Europa atual uma onda de preconceitos, rechaços e violências contra os diversos grupos de imigrantes?

Como é possível pessoas que usam sua inteligência para desenvolver tantas áreas das ciências e das humanidades comportarem-se, no que diz respeito a determinado grupo humano, da mesma maneira que os homens primitivos em relação às sombras das cavernas e ao temor dos fantasmas que imaginavam habitar a escuridão?

É claro que existem fortes fatores culturais, econômicos, históricos e políticos envolvidos. Mas usando um enfoque psicanalítico, podemos pensar que nós, adultos, quando nos sentimos vulneráveis, agimos de forma parecida com os bebês. Para o pequenino, fantasiar que apenas ele pode ocupar o balanço do parque o torna poderoso e traz um ganho psíquico: é uma forma de compensar seu desamparo. Quanto mais frágil se sentir, maior será a busca de uma onipotência imaginária. Assim nos é conveniente dividir o mundo entre os cidadãos de bem e os bandidos, os cristãos e os ateus, os defensores da família e os comunistas. Como bandido é sempre o outro, ocupamos na fantasia o lugar da potência, da pureza e do poder.

“Transforme a América no que ela já foi de grande”, diz o presidente norte americano. Acreditar nesse lugar de potência, de povo superior, e ao mesmo tempo crer que só não somos gloriosos porque um outro atrapalha, exprime bem esse tipo de funcionamento: “vamos construir uma muralha!”

Quanto mais restritas forem as possibilidades de cooperar, de criar a partir da interação com o diferente, maior será a violência da intolerância, passando a imaginar que a generalização do estereótipo descreve a realidade do outro. Quanto menor forem os recursos simbólicos de um grupo, maior a chance de regredir a essa gramática binária e primitiva para descrever-se: eu bom, não eu ruim.

Bill Watterson acerta quando argumenta, com sua ilustração, que essa lógica não traz vencedores. Na maioria das vezes, ela termina em tragédia. Já Davi e Maria Clara, daqui a algum tempo terão desenvolvido uma maior capacidade de simbolização, o que os tornará aptos a brincar de forma colaborativa, onde as diferenças, antes motivo de competição e desejo de aniquilar o outro, são agora úteis, interessantes e capazes de diversificar e melhorar o que estamos fazendo.

Essa capacidade de associar-se para brincar está na base de tudo o que fazemos de criativo, desde a criação de sistemas de economia mista, como nos países nórdicos, até a equipe de cientistas que levou o homem à lua, ou ainda lançou a Voyager aos confins do nosso sistema solar.