Falta de Dona Ana

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Quando eu era criança, a casa de minha avó era como um paraíso. Lá nos reuníamos em tardes de domingo, todos os seus netos de diferentes idades. Íamos lá para brincar e saborear suas delícias: bolinhos de chuva, pão caseiro, espera marido, sagu feito com vinho, queijo feito por ela e o melhor sonho de goiabada que já experimentei. Em muitos desses domingos, os parentes de Rio Preto, cidade vizinha, também iam passar o dia em sua casa, e aí a folia, para nós crianças, era completa: se o número de primos reunidos aumentava, a possibilidade de brincadeiras também.

Elogiar sua comida era bom, mas ela não esperava até que a bajulação acontecesse. Quando chegávamos à sua casa, ela já anunciava tudo o que havia cozinhado, assegurando que estava “uma delícia”. Preparar um prato para alguém é uma maneira de dar para receber: quando se oferece um prazer ao outro, espera-se também ser admirado e amado. Aquele que cozinha para outro, sente-se aceito, no registro inconsciente, de uma forma muito primitiva, como sendo incorporado no corpo daquele que se alimenta.

Quando vejo alguém postando foto de comida, principalmente quando é massa ou algum tipo de pão, me lembro da minha avó e de seus sonhos de goiabada. Contei isso para uma amiga, que imediatamente lançou a pergunta: por que as pessoas fazem isso? Acho que ninguém está de fato interessado em saber o que o outro está comendo, disse ela.

Acredito que minha amiga tenha alguma razão, saber o que outro come não é assim tão interessante. Mas a necessidade deve estar mais em quem publica seu prato. Publicar foto do que estamos comendo pode nos dar um sentimento de ser aceito, e de ser admirado e amado. Oferecemos a imagem do alimento de forma parecida com aquele que oferece a comida real.

Podemos também pensar a foto de comida nas redes como reflexo da imensa solidão que nos atravessa, sintoma de nossa época. Como a comida sempre foi partilhada pelo grupo e a refeição sempre foi um momento de encontro, seja em volta da fogueira ou em torno da mesa, compartilhar a imagem do prato pode ser uma saída, pela via da fantasia, dessa solidão. Uma maneira de sentir-se menos isolado: se estamos ambos vendo o que eu estou comendo, estamos de certa forma, juntos.

Mas talvez esse chamado a testemunhar a refeição alheia seja sintoma da maior distância entre as gerações. Antes a mesa era o lugar de encontro por tradição, onde pai, mãe, filhos, avós, bisavós e todos da família se sentavam. Cada um ocupava seu lugar. Para uma mãe, não existe felicidade maior que ver seu bebê “limpar o prato”. Para o filho, comer com gula pode ser uma forma de responder ao desejo da mãe, lhe dando prazer. Se for verdade que avó é mãe duas vezes, fica compreensível o prazer que elas têm em presenciar os netos se alimentando.

Me lembro de muitas vezes ter repetido o prato para satisfazer o desejo de dona Ana: coma tudo! Coma mais! Pode ser que nessa imensa mesa coletiva das redes sociais, ainda precisemos de alguém que se importe com o que estamos comendo. Podemos pensar então que postar foto de comida é sinal não apenas de solidão, mas de um sintoma novo: de falta de avó.