Gosto por Sangue

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Para Nietzsche, o nascimento da civilização só foi possível a partir do momento em que alguém renunciou a uma retaliação. O desejo de vingança, para o filósofo, tem sua gênese na demanda por justiça. Mas nem por isso um e outro são proporcionais, e o que distingue a barbárie da civilização, para ele, é justamente a insistência em se produzir mecanismos que separem um do outro.

Apesar de saber disso, admito que sou uma pessoa vingativa, assim como você, provavelmente, também seja. Não que eu faça coro com aqueles que entoam o refrão do “bandido bom é bandido morto.” Na realidade, não aprovo nenhum tipo de violência, tortura, muito menos pena de morte. Mas depuro minhas desavenças na ficção. Antigamente nos reuníamos em praça pública para assistir ao rolar das cabeças dos culpados. Hoje não fazemos mais isso, mas praticamos algo semelhante, sem nos darmos conta, nas telas da TV e do cinema.

Os que assistem aos filmes de Quentin Tarantino devem saber do que estou falando. A vingança é tema recorrente nos filmes do produtor, que coloca a narrativa do “final feliz” sob a condição do chão forrado pelo sangue e pelos corpos dos inimigos. Pode parecer estranho, mas esse é o ingrediente que garante o sucesso dos seus filmes. Tarantino, ao construir seus roteiros com base em nossa sede de vingança, seja contra machistas, escravocratas ou nazistas, demonstra saber algo sobre nós: todos já nos sentimos, de alguma forma, como o judeu ou como o escravo, injustiçado, impotente e humilhado, e assistir na tela à carnificina dos “maus” acaba tendo efeito catártico, nos satisfaz.

Não é algo que costumamos admitir, mas ver sofrer aqueles a quem consideramos nossos inimigos, “pessoas más” que nos prejudicaram em algum momento, pode causar grande satisfação. É como o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Na sinceridade, ninguém quer que o outro seja feliz. Desejamos morte lenta e dolorosa. Isso porque odiar nada mais é que uma outra face do amar, o seu avesso. O contraponto verdadeiro do amor seria a indiferença. Mas isso leva tempo.

O amor quando vira do avesso deixa marcas, nos sentimos injustiçados. E assim como os escravos marcados, ou como os judeus que foram vítimas do nazismo, com números tatuados na pele, os personagens de Tarantino carregam também um emblema. Em Bastardos Inglórios, quando o vilão não é cruelmente aniquilado, ele é marcado com uma suástica na testa. Nem tudo conseguimos resolver com uma solução elegante. Tem coisas que não se esquece, e nesse caso, o não esquecimento está a serviço de garantir a não repetição.

Como conviver então com as cicatrizes que pulsam na pele e manter mesmo assim a civilidade? Que destino dar à mágoa, à nossa sede de vingança e à todo esse mal estar que não gostamos de admitir em nós? Potencialmente, somos tanto carrascos quanto vítimas ressentidas. O próprio Tarantino dá a deixa, na cena em que Shosanna Dreyfuss, personagem do filme que teve sua família assassinada, se disfarça de operadora de projeção, reunindo um grande número de oficiais nazistas em uma sala de cinema, planejando explodir a todos.

Depurar a agressividade, a mágoa e a sede por vingança na tela do cinema pode ser uma forma de eliminar esses excessos, mantendo a corrente de polidez e civilidade necessária para que não retornemos à barbárie.