Oferenda Para o Azar

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Dia de pagamento, o banco está lotado. É verão e o ar condicionado da agência não está funcionando. Tudo bem, antes ficávamos na fila em pé, ao menos agora pegamos senha e esperamos sentados, pensa o rapaz protagonista da cena, que para distrair-se da contrariedade da espera, olha à sua frente e nota uma senhora pegando água. Resolve fazer o mesmo, mas quando coloca o copo na pequena alavanca, nada sai. A água acabou justo na sua vez, e ninguém parece estar disposto a trocar o galão que abastece o bebedouro. Sem problema, pensa ele, faltam apenas 4 pessoas na sua frente. Mas um funcionário anuncia que o sistema caiu, sem previsão para voltar a funcionar.

Uma senhora sentada logo atrás declarou em alta voz que só podia ser com ela, mesmo! Era uma azarada! Nesse momento o rapaz se vira, insistindo que o motivo do entrave com certeza era ele: – Você não imagina, comigo tudo acontece! A água acabou justo quando eu fui pegar! E tem mais, se eu estou em uma fila, a fila do lado anda mais rápido. Mas se eu troco de fila e vou para a que está andando rápido, pode ter certeza que ela para, e a que eu estava antes começa a andar. E assim ficaram os dois, reivindicando cada um ser a causa da má sorte.

A situação é no mínimo intrigante. Quem nunca teve a sensação de que o sinal sempre fecha na sua vez de passar? Mas o que soa mais enigmático é a disputa para ser o escolhido como a causa do azar. Qual seria a vantagem de ser o eleito para a desdita? Não deveríamos reivindicar a sorte? De forma semelhante, quando tudo está indo bem, é comum ouvirmos a frase: “está tudo tão perfeito que não vou nem ficar falando para não estragar.”.

Pode parecer estranho e soar contraditório, mas as pequenas adversidades podem ser sentidas como vantagem, e o que soa na aparência como pessimismo carrega também seu avesso: pode ser visto como um ato de otimismo. Essa estranha maneira de se pensar é um resquício de um pensamento infantil e muito presente em nossos remotos ancestrais.

Entre os povos primitivos, na antiguidade (e ainda hoje em alguns povoados), era muito comum atribuir características e sentimentos humanos a elementos da natureza. É o que chamamos de pensamento animista. Assim, se uma catástrofe natural devastasse um povoado, o fenômeno seria compreendido como fúria ou descontentamento da natureza. Se as lavas de um vulcão, por exemplo, destruíssem e matasse parte de uma população próxima, a catástrofe provavelmente seria interpretada não como um desastre natural, mas como a ira do vulcão, zangado com os homens (não é de hoje que nos colocamos no centro de tudo o que acontece).

Qual a solução para conter o ímpeto destruidor da natureza e apaziguar seu descontentamento com os homens? Nas mais diversas culturas primitivas, a saída encontrada era oferecer um sacrifício. Assim, no exemplo do vulcão, bastaria de tempos em tempos saciar a sua fome e apaziguar a sua ira, não permitindo que ambas atingissem uma proporção maior, capaz de transbordar em forma de destruição avassaladora.  Mandava-se para o altar da oferenda uma pessoa, ou um animal, esperando que este fosse aceito para ser consumido no lugar de toda a população.

Essa reivindicação de ser a causa do que dá errado  pode ter uma função em nosso psiquismo muito parecida com os sacrifícios dos povos primitivos. Como se fossem oferendas, os pequenos incidentes funcionariam para aplacar a ira do azar maior: manda-se para a fogueira uma pequena má sorte, esperando que ela seja consumida no lugar de uma desgraça verdadeira. Na fantasia, os pequenos azares substituem os grandes. Se sou a causa da má sorte, minha cota de azar está paga.

Notem que humanizando a natureza, nossos ancestrais tinham a ilusão de poder controla-la: se está furiosa, basta apaziguá-la, se está faminta, basta alimentá-la. Fazemos algo parecido, já que oferecemos no altar da má sorte uma pequena porção de nosso tempo, de nosso dinheiro ou de nossa paciência. Depois disso, a fúria do azar estará saciada. Se o que tinha pra dar errado já aconteceu, o destino seguirá na bonança.