Quem Ama Não Mata

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O perdão também cansa de perdoar. Depois de uma sucessão de abusos, finalmente um basta. Mas para seus parceiros, o rompimento é sentido como afronta: que atrevimento! Mulher não tem vontade própria na lógica dos abusadores. Machucados em sua frágil virilidade antes sustentada pela relação, decidem agora lavar a honra. Ela não pertencerá a mais ninguém se não for minha. Um “homem” pode preferir a morte (geralmente não a dele, mas da parceira) a perder seu atributo viril.

Uma mulher é uma sofisticada trama existencial que se entrelaça com a complexa narrativa do que é o feminino, mas o abusador só vê objeto. Um casal pode encenar performances de dominação em sua intimidade, caso se trate de uma fantasia compartilhada. No entanto, ninguém está sendo reduzido a condição de coisa. Mas a lógica do abusador não dá conta disso, ela tem uma equivalência com a dinâmica do estuprador. Estes muitas vezes se confundem. Ambos praticam um movimento extremamente cruel, não somente pela violência em si, mas principalmente por ser um gesto despersonalizante. Para o estuprador, pode ser Maria, Julia, tanto faz, ele só vê vagina. É apenas o buraco da vez. Para o abusador, a carga de ódio fica evidente na expressão do crime. Muito mais que acabar com a vida, é preciso destruir o corpo.

Somente nesse mês, na região, em menos de 10 dias, a busca do google responde: em Araraquara, Camila, de 32 anos levou dez facadas do ex-companheiro; em Pitangueiras, um lavrador de 42 anos atacou sua mulher com 20 golpes de faca; em Várzea Paulista, uma mulher de 34 anos foi morta pelo marido com uma facada no pescoço; em Teodoro Sampaio, uma mulher de 32 anos foi assassinada pelo marido com golpes de pé-de-cabra; em Piraju, um idoso de 81 anos estrangulou a mulher, de 86 anos, com uma meia; em Registro, após uma discussão, o policial aposentado Adelmo, de 52 anos, atirou contra a mulher, Cláudia, de 49, e depois se matou com um tiro na cabeça; em Jundiaí, Edio, de 23 anos, deu vários golpes de faca na companheira, uma boliviana de 20 anos; em Nova Iguaçu, o estudante de Medicina Altamiro, de 21 anos, espancou até a morte sua namorada, Patrícia, de 22; em Ilha Solteira, Maria Julia, 17 anos, aluna de Zootecnia da Unesp, levou várias facadas no caminho para a faculdade. O principal suspeito é o ex-namorado da vítima que não aceitava o fim do relacionamento e em Osasco, Silvio Augusto da Costa mata mulher a facadas e manda fotos para a filha da vítima. O motivo: “tive a honra ferida”.

A frase do título vem de uma campanha dos anos 80. De lá pra cá melhoramos um pouco na punição dos assassinos. Temos uma lei de feminicídio, mas somente as leis não são suficientes. É preciso a desconstrução do estereótipo machista. Um dos grandes obstáculos para a prevenção do feminicídio é a resistência em se denunciar. Muitas mulheres acreditam que o ciúme e a violência são provas de um amor grandioso. Outras temem passar por descrédito. Mas a culpa não é delas, a naturalização da mulher como histérica, sofrendo chiliques pela sua própria essência acaba por anular a sua voz, fazendo-a calar-se diante de situações de desconforto. É um desamparo aprendido inconscientemente por uma estrutura social patriarcal.

“Mereceu, provocou, estava querendo,” são frases que ouvimos de forma corriqueira sempre que um caso de estupro acontece, o que mostra que embora a violência contra a mulher aconteça em ambiente doméstico na maioria os casos, ela se alimenta também de um discurso público que dá legitimidade ao ato. Despertar desejos está no percurso de uma mulher, mas não faz parte de seu roteiro ser reduzida a coisa, e muito menos a um mero objeto de desejo. Há sempre um outro lado tratando-se do feminino, um mais além, algo indecifrável e difícil de ser apreendido.

O prestígio social da guerra continua sendo mais valorizado que a capacidade de gerar a vida. Diante da impotência de sentir-se castrado pelo fim da relação com aquela que julgava possuir, nada mais esperado dentro da estrutura discursiva machista que o gesto aniquilador.