No Tempo do Desapego

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Já é uma ideia aceita e comum o pensamento de preenchermos o nosso vazio possuindo objetos. Diga-me o que te pertence e eu te direi quem tu és. Em um mundo de pessoas que se cercam de objetos descartáveis, muitos comprados por compulsão, não é sem motivo que tanto se fala hoje em desapego.

Desde o início da era moderna, há um crescente desmonte dos antigos suportes tradicionais que caracterizavam a sociedade, marcada por uma ordem hierárquica em que cada um ocupava um lugar bem definido. O homem começa assim, a ficar à mercê de uma experiência subjetiva precarizada, com um sentimento de indefinição a respeito de seu lugar e de sua própria identidade. E com esta identidade tão frágil e solta, tentamos nos representar por aquilo que possuímos.

Amontoamos então, em volta de nós, uma profusão de pertences através dos quais esperamos nos valorizar. O que temos visto, entretanto, é que esses objetos não deixam efetivamente uma marca suficiente, que sirva de suporte a construção de uma identidade, e tornam-se assim rapidamente obsoletos.

Nesse sentido, o debate em torno do desapego é de extrema importância. É fundamental que saibamos descartar, nos dar conta da inutilidade do acúmulo. Mas esse processo implica antes em saber o que somos e quais são nossos verdadeiros pertences, aqueles essenciais que nos dão suporte para forjamos de forma mais consistente uma identidade.

Quando somos bem pequenos, um pedaço de fralda, um paninho qualquer, um bicho de pelúcia ou um brinquedo são com frequência nossos companheiros inseparáveis. Trata-se do primeiro objeto que a criança reivindica como seu, nosso primeiro pertence, o qual o psicanalista Winnicott chamou de objeto transicional. Ele tem a função, segundo o psicanalista, de diminuir a ansiedade de estar aos poucos crescendo e, portanto, se separando psiquicamente da mãe. O objeto passa a ocupar um plano intermediário, entre o real e o simbólico, pois fará a função simbólica da mãe, enquanto esta não é completamente internalizada.

De forma semelhante, existem relatos de como um simples objeto, mantido como pertence pessoal, como um anel, um relógio quebrado ou um simples botão de roupa se tornou um tesouro um tanto valioso em Auschwitz, pois desafiava o castigo da impessoalidade, raspando seus cabelos, separando as pessoas que se conheciam e retirando seus pertences, os nazistas transformavam pessoas em números. A despersonalização era uma forma empregada nos campos de concentração para destruir, antes do próprio corpo, a própria humanidade. A posse desses objetos fazia, portanto, parte de uma estratégia de sobrevivência.

Os andarilhos, por sua vez, podem nos causar certo fascínio, ainda hoje, pela ideia de liberdade que evocam ao carregarem apenas o necessário. Essa ideia seduziu muita gente em décadas anteriores, mesmo momento do movimento de contracultura, quando parte da crítica ao sistema apontava para o excesso de fetiche investido no objeto a ser consumido. Carregando apenas o que consideram ser essencial, os andarilhos exercem uma recusa, podendo circular por todos os lugares mostrando seu “estar de fora”, o que não deixa de ser uma forma de afirmação de sua identidade: sou aquele que não tem pertences, por isso não pertenço.

É bem verdade que nos rodeamos de objetos dos quais não precisamos, na esperança fracassada de constituir, através deles, uma identidade. Nessa direção, fica fácil nos tornarmos escravos dos nossos bens e não há problema, a princípio, em uma dose de desapego. Mas atirar tudo pra cima pode ser tanto libertador como um processo depressivo. O despojamento causa certo fascínio, justamente, porque sabemos o peso de possuirmos um sem número de objetos que não cumprem a falsa promessa de nos devolver alguma coisa de nós mesmos.

Mas no tempo do desapego, é preciso uma dose de cautela, pois a palavra pode ser usada de forma paradoxal: o desapego que nos propõe renunciar ao acúmulo de dinheiro também estimula a gastá-lo impulsivamente. Premissas como “mais vale um gosto que um dinheiro no bolso” ou “menos é mais” podem ser de fato uma proposta construtiva, mas podem estar também a serviço de uma fantasia inatingível de “consumo inteligente”, como se o ato de compra fosse um ato de libertação. O capitalismo tem essa capacidade de se apropriar de tudo, até do próprio desapego, e usar a seu favor