Você tem fome de quê?

Sobre o que se come e o que se oferece como alimento

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Recentemente foi sancionado em um evento imenso, que contou com representantes de alguns seguimentos da sociedade, o projeto de um prefeito para “acabar com a fome” em sua cidade. A proposta consiste em processar alimentos descartados, vencidos ou próximos ao vencimento, transformando-os em uma ração. A matéria prima seria “doada” por empresas que lucrariam de duas formas: ganhariam isenção fiscal e não teriam mais que arcar com o custo do descarte.

O composto, feito de tipos variados de alimentos fora do padrão de consumo, foi recebido com muitas críticas. O Conselho Regional de Nutrição logo se manifestou contra: “um retrocesso enorme”. A crítica é válida, mas não deve se restringir ao aspecto da nutrição apenas. Existem mais mistérios no alimento que nos entra pelo início e sai pelo fim do tubo digestivo do que pode nos mostrar uma tabela nutricional.

Bebida é água! / Comida é pasto! Você tem fome de quê? Assim começa da música dos Titãs, uma das grandes bandas que marcaram minha geração e que já denunciava que comer não se delimita ao biológico. Por uma perspectiva orgânica, a fome é apenas uma necessidade fisiológica pelo alimento que fornece energia e outros elementos para manter o corpo funcionando. Mas o ato de comer carrega muitas outras nuances, pois ele é sempre carregado de simbolismo e de sentimentos, que estão ligados a aspectos pessoais, familiares, da cultura e da época em que se vive.

Alguns alimentos curam, outros matam. Atribuímos significado ao nosso alimento. Há alimentos aos quais outorgamos poderes malignos ou benignos, afrodisíacos, que rejuvenescem ou nos adoecem. Comer pode ser um exercício de prazer e pode estar ligado a muitas crenças. Nas mais diversas religiões, existem oferendas de alimentos, rituais e tabus envolvendo a comida.

Na mitologia Grega, Tântalo, no afã de provocar os deuses, convida a todos do Panteão para um banquete em seu palácio e, pondo em teste a onisciência divina, lhes oferece o alimento terrestre sob sua forma mais abjeta: a carne de seu próprio filho, Pélops. Enfurecidos com o insulto de Tântalo, os deuses amaldiçoam não só a ele, mas várias gerações de seus filhos. Na Bíblia, livro da Gênese, Deus fica satisfeito ao sentir o cheiro do cordeiro oferecido a Ele, queimado em sacrifício por Abel, um dos filhos de Adão. Desagradou-se, no entanto, da oferenda feita com os “frutos da terra”, feita pelo irmão Caim. Os deuses também têm suas preferências alimentares.

Nós, apesar de pobres mortais, também mostramos nossas exigências logo cedo, desde o início da vida. A mãe lactante seleciona os alimentos que irá ingerir, tentando não “corromper” o seu leite. Este ainda é o único alimento do bebê, mas ainda assim pode provocar muita dor para ser digerido. Quando se iniciam, as cólicas são um martírio para as mães, podendo ser sentidas como um primeiro conflito na relação mãe e bebê. A seletividade na escolha do que comer passa a ser exercida pelo filho, quando já está mais crescido: descobrem que podem abrir a boca somente quando querem, e começa então outra etapa da agonia materna. “Esse menino só come o que ele quer!”

Mais tarde, quando os hormônios afloram e tomam conta do corpo, todos estão sujeitos a serem conquistados pelo estômago. Homens e mulheres são suscetíveis às seduções culinárias, e faz parte dos rituais de conquista um prato especial, servido em um jantar romântico.

Satisfação não está apenas na barriga cheia, mas também na alma preenchida. A comida é nossa primeira forma de diálogo com o mundo, que no início se limita à mãe, para depois se estender aos outros e à vida. A fome está longe de ser apenas orgânica.

Nosso primeiro alimento é sugado diretamente do corpo que foi nossa primeira morada, daquela que nos gerou e nos sustentou. O leite materno, além de saciar a fome, vem acompanhado de amor, de aconchego e de toda a segurança que a mãe representa. Não tem como tratar de forma simplista algo que carrega em sua simbologia o vínculo mais profundo que vamos experimentar durante toda a nossa vida. O que escolhemos para comer, e também o que oferecemos aos outros como comida, diz muito a nosso respeito e revela algo da forma como nos relacionamos com o outro.