Como soldados e batedores: sobre tendenciosidades

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Imagine que você é um soldado em combate. Pode ser um soldado romano, medieval ou um combatente da II Guerra. Não faz muita diferença, pois independente da época e do lugar, suas ações serão resultados de reflexos viscerais, que nascem de uma necessidade de se proteger e proteger os seus, derrotando os inimigos. Agora, imagine que você não é um soldado, mas um batedor. Sua função não é atacar e nem defender. Sua função é tentar entender. Para isso, o batedor avança no território inimigo e colhe o maior número de informações: o tipo de terreno, ou se existem rios, pontes, bases inimigas, e com essas informações da realidade, avalia se as estratégias podem ser modificadas.

Podemos pensar essas duas funções, a de soldado e a de batedor, como estruturas psíquicas, ou metáforas de como avaliamos informações no nosso cotidiano. Para isso, vamos voltar à França do século XIX, onde um pedaço de papel descoberto por oficiais das forças armadas trouxe à tona um escândalo político. Através dele, descobriu-se que alguém estava vendendo segredos militares para a Alemanha.

Foi iniciada uma grande investigação, e as suspeitas rapidamente se voltaram para Alfred Dreyfus. Ele tinha um histórico impecável, mas era o único oficial judeu do grupo. O antissemitismo era forte na França. A caligrafia dele foi comparada à do papel, e apesar dos especialistas não terem certeza para concluir, ela foi considerada compatível pelos oficiais. Seu apartamento foi vasculhado em busca de provas de espionagem, mas nada foi encontrado. Os investigadores ficaram, apesar disso, ainda mais convencidos de sua culpa. Isso provava, para eles, que Dreyfus era além de espião, extremamente habilidoso em esconder as provas. Investigaram a vida pessoal de Dreyfus. Falaram com seus professores. Descobriram que ele estudava línguas estrangeiras quando era jovem, o que evidenciava, para os investigadores, um desejo de conspirar com governos estrangeiros.

Dreyfus foi condenado. Em praça pública, sua insígnia foi rasgada e sua espada quebrada, e ele foi sentenciado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, nas Guianas Francesas. De lá, Dreyfus escreveu cartas e mais cartas, implorando que reabrissem o caso para que ele provasse sua inocência, mas o caso estava considerado encerrado.

Por que será que os oficiais ficaram tão convencidos da culpa de Dreyfus? Será que armaram para ele? Não é isso o que os historiadores acham. Os oficiais realmente acreditavam na sua culpa. O que isso pode revelar sobre nós e sobre os julgamentos que fazemos? Por que os oficiais franceses, a partir de evidências tão fracas, estavam convencidos a condenar um homem?

Esse fenômeno é chamado de Tendência Cognitiva.  Nossos pressupostos inconscientes, nossos medos e desejos, dão a forma de como interpretamos as situações. Assim, algumas ideias são sentidas como nossas aliadas. Queremos então que “vençam”. Tentamos defende-las. Outras ideias são sentidas como nossas inimigas, e queremos então ataca-las. Vocês podem notar que estamos aqui na metáfora do soldado, defendendo nossos aliados e combatendo nossos inimigos, ainda que aliados ou inimigos sejam ideias.

Se formos defensores da pena de morte, por exemplo, mesmo que estudos mostrem que a pena de morte não diminui a criminalidade, teremos uma forte tendência à simplesmente ignorar esses dados. E vice-versa. A Tendência Cognitiva molda nossa forma de pensar: o que achamos ético, justo, e também nossa forma de votar passa por seu crivo. Mas o que mais chama a atenção é como a Tendência Cognitiva é inconsciente. Podemos fortemente achar que estamos sendo justos, e ainda assim arruinar a vida de um homem inocente.

Para Dreyfus, felizmente, a história não parou aí.  Um oficial de alta patente, Coronel Picquart, apesar de ter aversão aos judeus e de acreditar (como todos os outros) que Dreyfus era culpado, notou que a espionagem continuava e que outro oficial tinha uma caligrafia perfeitamente compatível com o papel descoberto. Lançou então a seguinte dúvida: e se estivermos todos equivocados? Ele levou suas descobertas aos seus superiores, mas para seu espanto, eles não se importaram, dando outras explicações, do tipo: você só encontrou outro espião, não significa que Dreyfus seja inocente.

Dreyfus foi solto 10 anos depois, mas antes de ter a inocência reconhecida, o próprio Picquart foi preso por deslealdade e traição. Podemos notar qual foi o grande mérito de Picquart: apesar de ter os mesmos preconceitos e tendências de seus colegas, com novas informações superou tudo isso e defendeu sua nova posição. Podemos dizer que Picquart, no momento em que reavalia a situação a partir de novas informações, e não a partir das suas crenças e da vontade de ver uma ideia ganhar ou perder, sai da metáfora do soldado e se enquadra na metáfora do batedor.

Julia Galef¹, cientista da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, passou alguns anos pesquisando de onde vem o funcionamento do tipo batedor. Por que algumas pessoas conseguem vencer seus preconceitos e tendenciosidades, e procuram saber dos fatos com mais objetividade? A resposta, segundo ela, está nas emoções que nos motivam. Na mentalidade soldado, o medo, o tribalismo e a defesa tendem a moldar o nosso comportamento. Já na mentalidade do tipo batedor, a curiosidade e a ânsia por resolver problemas são os motivadores que estão na base da forma como encaramos e analisamos os fatos. A autoestima, no caso dos batedores, não está ligada ao quanto estão certos ou errados sobre determinado assunto. Assim, eles podem acreditar que pena de morte seja uma boa, mas se pesquisas mostrarem o contrário, eles conseguem mudar de posição.

Essas duas características, a do soldado ou a do batedor, não tem relação com o quanto se sabe, ou com uma medida de inteligência. A questão é sobre como se sente. Elas são muito mais emocionais do que racionais.

Provavelmente nenhum de nós já perseguiu um oficial judeu injustamente. No entanto, sobre assuntos polêmicos, como religião, futebol e principalmente política ultimamente, já podemos ter agido das duas formas: como batedores, procurando números, estatísticas e informações para construir nossa avaliação, ou como soldados, correndo o risco de condenarmos alguém injustamente.

¹ O texto é baseado na palestra de Júlia Galef “TED-Por que você acha que está certo, mesmo quando está errado.”