Infância Protegida

Sobre o Boi da Cara Preta, a Cuca e Outros Personagens do Universo Infantil

publicidade

Ninguém mais ousa atirar o pau no gato. Algumas escolas infantis estão dando nova roupagem para canções de ninar e contos de fada. Chapeuzinho Vermelho agora não corre mais o risco de ser devorada pelo Lobo Mau. Ela ouviu a sua intuição e se protegeu. O Cravo não briga mais com a Rosa. Em vez disso, a encontra, fica feliz e ela fica encantada.

Durante muito tempo não se questionou o conteúdo assustador dessas histórias e cantigas, mas assistimos agora, já há algum tempo, um movimento de purificação dos contos de fadas e personagens infantis, eliminando deles tudo o que é incômodo ou revelador de conflitos.

É verdade que estamos no tempo do politicamente correto. Eu, que adoro gatos, também concordo que não se deve atirar o pau neles, nem machuca-los de forma alguma. Mas apenas tratando-se da realidade. É claro que tudo pode e deve ser questionado, inclusive se as canções de ninar não aterrorizam mais que acalmam.

Mas se essas coisas feias estão aí há tempos, talvez elas exerçam alguma função positiva. Já notaram como as partes mais assustadoras das histórias infantis, como a cena em que Chapeuzinho está prestes a ser atacada pelo Lobo, são as que os pequeninos nos pedem para repetir inúmeras vezes? É de pequeno que aprendemos a lidar com o medo. Mas este não surge pelo descuido de adultos que cantam canções desastrosas, ou contam histórias de terror. Os monstros e perigos comparecem ao chamado dos próprios miúdos, são exigência deles, e podem sim ajudar a acalmar.

O Boi da Cara Preta, por exemplo, consegue direcionar e nomear a angústia da criança, transformando-a agora em medo de algo, e possibilitando assim a passagem do estado de alerta para o sono. Parece estranho, mas é vantajoso para a criança (e para o adulto também) sentir medo de algo bem definido, algo que tenha cara e nome, do que ficar à mercê de uma angústia indefinida.

Acreditar que o mal está escondido no armário, ou debaixo da cama, na forma de um monstro ou de uma bruxa, paradoxalmente ajuda a criança a adormecer. Dar ao medo um contorno, uma história, um lugar de existência no mundo, ajuda a nos organizar. Se a ameaça é o Boi ou a Cuca, é mais fácil evitá-los, do que ficar exposto a uma angustia sem nome, pois um personagem com contornos bem visíveis, que seja mais palpável, consegue representar melhor um perigo. Uma ameaça sem forma, no entanto, é muito mais perigosa.

Os que assistiram a animação Monstros S.A., talvez se lembrem do lema da fábrica, no mundo dos monstros: “We scare because we care” (nós assustamos porque cuidamos). Por esta perspectiva, os monstros acabam cuidando mesmo. Se o mundo é um lugar perigoso para os adultos, não o será para as crianças, frágeis e dependentes? Qual a possibilidade delas se relacionarem com o seu medo? Se o representamos na fantasia, a criança pode evita-lo, ter a ilusão de controle que precisa, enquanto ainda é tão vulnerável.

Se nossa intenção é educar para fortalecer e para a não violência, é mais ponderado focar nas relações reais das crianças, na forma como ela trata seus semelhantes, seus colegas de escola, aqueles que são mais tímidos ou mais vulneráveis.

As crianças precisam sim de proteção, mas o que mais assusta um ser tão dependente é todo tipo de abandono, como falta de limites e falta de olhar paterno e materno, provindo de um adulto fraco e ocupado demais para se ocupar delas. São vulneráveis, mas os pequenos têm necessidade de se sujar, de aventuras envolvendo o bem e o mal, e também sofrem de insônias e pesadelos. Para todas essas variações, são necessários monstros, alguma violência e histórias de matar e morrer. Elas precisam saber-se compreendidas, sem precisar ocupar o ideal de pureza que os adultos estão exigindo.