RESENHA: Parasita

Embriaguez Ideológica e Desamparo Social

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Ser vítima de um determinado contexto social pode também significar sentir asco aos que são acariciados pelo poder econômico, situação em que se beira a linha tênue da quebra ou não, de códigos morais da sociedade. Em Parasita, o diretor Bong Joo-ho apresenta logo no ato a pobreza material da família de Ki-taek (Song Kang-ho), mostrada em detalhes do cotidiano. Pequenas coisas não passam batidas dentro dos rotineiros agradecimentos de pessoas que não acostumadas com muito, desde a comida ao WI-FI, a pedra que traz riqueza familiar – que acompanha o garoto Kim ao longo da jornada, nada passa sem o devido valor
Mesmo vivendo à margem da sociedade, todos os membros da família possuem conhecimento, inteligência e cultura, habilidades onde em um mundo justo os fariam empregados. Uma obra do acaso faz com que o filho adolescente da família começa a dar a aulas de inglês á uma garota de família rica. Tendo a docência do garoto como marco zero da dualidade de situações, o roteiro começa passear por críticas sociais, trafegando por gêneros cinematográficos dos mais variados.
A fotografia trata de apresentar a outra face da sociedade com cores frias, indiferentes, que lembram Aquarius. O roteiro passa a explorar a “inocência” da mãe para inserir o contexto de alienação em diversos assuntos sociais e morais. Com fidelidade cega e feudal ao marido, apresenta-se uma família tipicamente conservadora, em que o marido sai para trabalhar e a mulher fica exclusivamente aos cuidados da casa e dos filhos. Seria totalmente trágico, não fosse também uma das pitadas de ironia do roteiro que menciona os EUA como centro comercial – de onde só se sai coisas boas, ironia e boa estratégia comercial.
O segundo ato ganha tom mais cômico, oriundo do sucesso da missão parasita que começa a se entranhar no seu novo mundo. Com perspicácia que até Edmond Dantès se surpreenderia, o filme ganha trilha sonora clássica – alusão requintada e cinematográfica ao sadismo, criando um ambiente de Laranja Mecânica. O fim do segundo ato é marcado pela cena icônica de embriaguez ideológica e desamparo social, banhada a diálogos de como se encaixar na sociedade e em uma casa de família rica.
O terceiro ato ganha tons de suspense a partir da uma volta inesperada, nesse momento a versatilidade de Bong Joo-Ho apresenta em curto espaço de tempo tons de suspense, drama e comédia – com fotografia viva e requintada ao som de música clássica. Pelos olhos da despensa, o roteiro mostra a miséria humana que passa batida aos olhos encharcados da cegueira branca – retratada por José Saramago, onde a alienação e a moral deixam passar batido o que está embaixo do próprio teto. O movimento da câmera é perfeito; o travelling vertical demarca os estratos sociais, o confinamento dos párias e marginalizados de um sistema que somente acentua a concentração de renda e as desigualdades várias.
Reviravoltas pontuais são marcas nos três atos, o roteiro trata da preparação final com calma e delicadeza, todos tem seu momento de “riqueza”, tons de espionagem que trafegam entre 007 e Kinsgman prendem a atenção. Graças a uma “chuva abençoada”, somos apresentados a real dimensão de localidade, as distâncias entre as famílias são abismais, não apenas ideologicamente e economicamente, mas na prática. Viver no subsolo, nas camadas mais mofadas, vivendo como um pária, descendo as escadas para o esquecimento, tudo isso poderia fazer de qualquer um, parasita.
No fim, parasita pode ser descrito não somente como uma metáfora da biologia – em que um organismo vive dentro de outro, dele obtendo alimento e causando-lhe dano. Não só pejorativamente – onde o indivíduo vive à custa alheia por pura exploração ou preguiça, mas também da moral, da convivência em sociedade e principalmente da vida. Nem a pedra da prosperidade conseguindo sobrepor as certezas que o mercado da desigualdade impõe. Com roteiro impecável, trilha sonora avassaladora, personagens que se completam dentro de uma métrica social, e uma direção assustadoramente versátil e criativa, o longa com toda certeza é uma obra prima do cinema no século XXI.