Injúria Delivery

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Artigo escrito por Ana Beatriz Rodrigues

Comentar o incidente com o motoboy do iFood é algo perigoso por dois motivos:
1- Não sabemos o que originou a discussão (o que não justifica adotar um
posicionamento discriminatório nem compactuar com qualquer tipo de discriminação)
2- Escancara o quão racista e hipócrita somos.

Me cansei de ver as pessoas fingindo choque dizendo que “o racismo é estrutural e está
crescendo por algum motivo”. Realmente, é estrutural, é algo que se aprende em casa.
Dizer que o racismo está aumentando já é falácia demais. Ele sempre existiu, só que
agora ele é filmado e exibido.

Mateus Abreu Almeida Prado Couto diz frases racistas contra o entregador Mateus Pires (Foto: Reprodução)

Vai me dizer que na escola nunca escutou chamarem alguém de “assolan” ou “bombril”
por ter cabelo crespo, que nunca chamou ou riu com alguém que chamava o coleguinha
de “nescau” ou “cocada queimada” ou de “negrinho do pastoreiro” ou qualquer outro
termo prejorativo?! Que nunca falou ou ouviu dizerem para um colega obeso ir rolando de
um local a outro? Que nunca agrediram e excluíram algum garoto por ser afeminado
demais? Não sou Nathalia Arcuri, mas me poupe!

Que bom que estamos evoluindo e percebendo o quanto essas atitudes são tóxicas, mas
fingir choque e surpresa com esse tipo de comportamento é exagero. Principalmente
vindo da burguesia brasileira.

Burguesia essa que não admite nenhuma autoridade além do seu Paychek, digo,holerite.
Um belo exemplo foi o caso de Aphaville em que o empresário Ivan Storel humilha e xinga
incansavelmente um policial que foi acionado pela sua esposa por violência doméstica.

O racismo precisa acabar e os racistas devem ser punidos, mas acima de tudo,
precisamos saber a diferença entre racismo e injúria racial! Também precisamos estudar
sobre saúde mental para evitar passar vergonha quando tentamos enfiar uma excludente
de imputabilidade pra nos safarmos de absurdos como esse (pra quem não sabe, o
grandalhão alegou ser esquizofrênico para tentar passar um pano no que fez).
O racismo é crime tipificado pela lei 7.716/89, é imprescritível e inafiançável (significa que
pode-se meter o famigerado processinho por isso em qualquer dia da vida e que não
cabe fiança (Alô Produção! insere aqui um hiperlink para o textinho sobre fiança,
please!!!).

Em que pese racismo seja muito ligado a discriminação racial de negros, o art. 1º da lei
7.716/89 deia claro que é racismo discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional. Além das ofensas verbais e gesticuladas, configura
racismo atitudes que limitem ou impossibilitem o exercício de direitos e acesso a lugares
pelos motivos citados. Aqui a ação é pública incondicional. O que significa que se a
autoridade competente tomar conhecimento deve processar independente do
consentimento/vontade da vítima.

Já a injúria preconceituosa comporta um alvo específico. A ofensa é dirigida a alguém
especifico e não a um grupo de pessoas. Foi o que aconteceu no caso do motoboy.
Aqui o crime é prescritível (há um prazo para “meter o processinho”), afiançável e de ação
penal pública condicionada a representação- só há processo se a vitima assim quiser.
Aqui a vítima deve procurar a delegacia, ir ao Ministério Público, Comunicar ao juiz (sim,
pode-se ir até o juiz para comunicar um crime, embora seja tão incomum que talvez nem
os próprios magistrados se recordem disso) ou procurar um advogado para propor a
queixa-crime.

Dá pra fazer um artigo acadêmico, desses de 15 páginas, só para explicar o quanto
racismo é estrutural, educacional e sobre o papel da mídia- que vai dos comerciais de
margarina à mulher negra que só é exaltada nua e no carnaval- na manutenção nessa
postura criminosa e não é pra isso que vim aqui hoje.

Até aqui tudo bem, mas o que isso tem a ver com a saúde mental?
Muito. Existe uma coisa chamada Medida de segurança, que é aplicada quando o agente
não pode ser preso por certas circunstâncias que o tornam inimputável.

Existem duas espécies de medidas de segurança: internação em hospital de custódia e
tratamento ambulatorial. O caso concreto diz qual vai ser aplicada, mas sempre há uma
relação entre a conduta delituosa e a necessidade de tratamento psiquiátrico ao agente.

Diz o art 26 do Código Penal:

“Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da
omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento.

Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente,
em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental
incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”

Na pior das hipóteses é melhor visitar um dr de quando em quanto do que ficar
enclausurado numa penitenciária não?!

Se você faz algo num surto de esquizofrenia, não se pode dizer que era inteiramente
capaz de entender o que fazia.

Talvez ele realmente seja esquizofrênico, mas balbuciar como um troglodita racista não é
um sintoma de surto esquizofrênico. Dar uma desculpa dessas é uma forma de controlar
a repercussão em uma massa que sabe nada (ou quase nada) sobre doenças mentais e
psiquiátricas.

De toda sorte, mais do que exigir que casos polêmicos sejam investigados e punidos. É
preciso denunciar e podar hábitos, comentários e piadinhas discriminatórias suas, de seus
amigos e conhecidos. Não adianta compartilha textos de indignação com notícias como
essa se você passa o pano quando o caso não é midiático porque como diria minha mãe:
“você nunca vai melhorar o mundo se não consegue arrumar o seu quarto”.

 

Sobre a autora:

Ana Beatriz Rodrigues tem 24 anos e é advogada criminalista. Coordena comissões de diversidade de gênero e de direito militar da OAB Mirassol, além de ser membro da comissão da jovem advocacia. É pós-graduanda em direito público e em direito empresarial. Considera-se apaixonada pelo direito e pela advocacia desde que iniciou os estudos na área, aos 16 anos, pelo Centro Paula Souza.