Retalhos de Nós

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Minha tia contava que quando eu era ainda muito pequeno e passeava com ela em uma praça, no percurso eu ia descrevendo, de forma um tanto diferente, o que encontrava pelo caminho. “Um buraco ao contrário!”, “uma chupeta morta!”. Tratava-se de um pequeno monte de terra, formando uma elevação, que imaginei ser um buraco pelo avesso, e de uma chupeta caída ao chão, suja e faltando parte do bico.

É claro que não me lembro dessas cenas, lembro-me apenas dela me contando. Mas comecei a pensar, a partir de sua narrativa, que desde pequeno olhava o mundo de uma forma metafórica, quase poética, de dentro da toca do coelho. Talvez por isso trabalhar ouvindo narrativas e trabalhando ressignificações, abrindo novos vértices de percepção sobre um mesmo fato, me traga satisfação. Para isso, é preciso ouvir o avesso das coisas.

Na prática clínica, muitas histórias sobre o parto ou sobre tempos de criança são contadas. Elas são atribuídas a cada um como uma marca, um mito fundador, e funcionam como um primeiro laço com a cultura, a primeira trama de significados a respeito de nós que coloca o sujeito em um lugar de existência, do qual irá se relacionar com os outros dentro do universo simbólico. “Você era tão pequena, dormia em uma caixa de sapato…”; “não deu trabalho nenhum, mamava e dormia…”; “você chorou até um ano de idade, não sabia mais o que fazer…”; “era um bebê guloso, comia tudo…”; “demorou pra andar…”; “você era o bebê mais lindo que já vi…”.

Como nos tornamos isso que somos? Será que é a história familiar que nos determina? A cultura na qual nascemos? A ordem de nascimento dentre os irmãos? Ou estarão nossos dons e tendências guardados em nossos genes?

É fato aceito que somos determinados por tudo isso, uma mistura de fatores biológicos e socioculturais. São muitas as variáveis que nos constituem, e dependendo da perspectiva com a qual se arrisca alguma explicação, a ênfase é colocada sobre algum desses pontos. Apesar de todas essas variantes, é na narrativa pessoal que conseguimos garimpar a “lenda” de quem somos. São essas pequenas histórias sobre nós que usamos como referência para nos lançarmos no mundo como alguém.

No fluir do nosso desenvolvimento, temos oportunidades de ir dialogando com essas vinhetas, algumas vezes tentando confirmar as suas predestinações, outras tentando negá-las, ou ainda preenchendo suas lacunas, costurando retalhos para criar uma nova trama de significados a respeito do que somos, de qual o nosso lugar e o que viemos fazer no mundo.

Faz muita diferença como falamos sobre as experiências que passamos. A mesma história pode ser enquadrada por ângulos muito diferentes. No divã, aquele que está em processo de análise, passa sempre por uma escolha de enredo, elegendo consciente ou inconscientemente as formas de falar sua existência. Não existe história intrinsecamente trágica, todas as histórias são narrativas. E a sua história, qual é? Como você tem conversado com ela?